A menos de um ano das eleições, deputados e senadores continuam a desrespeitar as determinações do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre os critérios de transparência que devem ser adotados no repasse de verbas públicas e promovem nova farra bilionária com recursos do orçamento secreto. Entre 13 e 31 de dezembro, o relator-geral do Orçamento, senador Márcio Bittar (PSL-AC), registrou no site do Congresso indicações no valor de R$ 4,3 bilhões, mas os nomes dos congressistas que apadrinharam os pedidos foram ocultados em 48% dos repasses.
Na tentativa de evitar que os responsáveis apareçam, o relator relacionou como autores de quase metade das indicações prefeitos, vereadores, representantes de entidades sem fins lucrativos e até pessoas que não têm cargo público. No papel, eles são autores de pedidos que somam pouco mais de R$ 2 bilhões, aprovados pelo relator-geral, sem critérios claros. Os políticos que endossaram os repasses, no entanto, tiveram os nomes preservados.
Um dos solicitantes é o advogado Gustavo Ferreira, candidato derrotado a vereador, no interior de Minas Gerais, que disse ter tentado arranjar recursos para seu município, Antônio Carlos. Questionado pelo Estadão, Ferreira — que disputou a eleição de 2020 pelo Patriota — disse ter enviado um e-mail para o Senado e falado com alguns parlamentares, mas não respondeu quais.
Também em Minas, um morador de Papagaios pediu recursos para a saúde do município. Ricardo Correia da Silva é empresário e nunca concorreu a qualquer eleição. Um outro cidadão que se apresenta como presidente do diretório municipal do Podemos de Jequitinhonha (MG) levou R$ 300 mil. Além deles, a presidente da Associação Brasileira dos Criadores do Cavalo de Passeio e Esporte (ABCCPE), sediada na Bahia, pediu R$ 1 milhão.
A análise do Estadão foi feita em um conjunto de 3.350 documentos, disponíveis no site do Congresso, com cerca de 6 mil indicações de repasses. Como o material entrou na rede de maneira desordenada, foi preciso juntar 34 planilhas despadronizadas e buscar manualmente os nomes dos solicitantes presentes, em ofícios que somam 3.282 páginas, para inseri-los um a um.
Centrão
O saldo mostra que o principal beneficiado, com R$ 616 milhões, foi o Progressistas, partido do Centrão que abriga o presidente da Câmara, Arthur Lira (AL), e o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira. Em seguida, o PSL, sigla do relator-geral do Orçamento, Márcio Bittar, teve R$ 555 milhões. O terceiro lugar ficou com o PSD, legenda do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (MG), com R$ 438 milhões.
O Estado mais favorecido foi justamente o que elegeu Pacheco: Minas Gerais, com R$ 553 milhões. O nome do senador, porém, não consta nos documentos, apesar da influência exercida por ele sobre os recursos como presidente da Casa. Já as indicações de prefeitos, vereadores, secretários municipais e estaduais, além de representantes da sociedade civil, em Minas, chegaram a R$ 250 milhões, sem qualquer padrinho informado. Arthur Lira, por exemplo, só apareceu em um pedido, de R$ 950 mil, para um município alagoano.
Durante a crise instalada no Congresso com a decisão do Supremo de barrar a execução do orçamento secreto, em novembro passado, Pacheco foi a público defender a boa-fé do Legislativo em dar mais transparência ao processo. “A má-fé não pode ser presumida”, afirmou o presidente do Senado ao protagonizar a ofensiva, que tinha como meta o recuo da ministra Rosa Weber, responsável pela liminar.
Outros figurões que não aparecem nos documentos são o ex-presidente do Senado Davi Alcolumbre (DEM-AP) e o líder do governo no Congresso, Eduardo Gomes (MDB-TO). Mesmo assim, os Estados de Alcolumbre e Gomes foram bem contemplados por meio de pedidos feitos por prefeitos e representantes da sociedade civil.
Mais um fato que demonstra a falta de transparência é que os pedidos de repasse tornados públicos por Márcio Bittar, na soma de R$ 4,3 bilhões, ficam bastante aquém dos R$ 6,6 bilhões de emendas de relator-geral, empenhados no mesmo período, entre 13 e 31 de dezembro. Isso quer dizer que ou o relator-geral não divulgou todos os pedidos que recebeu ou a verba foi direcionada pelo Executivo da forma como bem quis, contrariando o discurso do presidente Jair Bolsonaro e de seus ministros, segundo o qual quem manda nesses recursos é o Congresso.
Agentes públicos também escolhem preço, modelo e marca do que vai ser comprado. O deputado Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ) foi além e escolheu até a empresa que deveria fornecer um ônibus. Estipulou também o valor de R$ 362.200,00 para cada uma das três unidades que indicou para o município de Itaguaí, no Rio de Janeiro: um modelo ORE 1 (4×4), de 29 lugares. Da mesma forma, uma série de associações da Bahia pediu a compra de “máquinas XCMG”. Também há vários pedidos de aquisição de ônibus com preços que variam bastante.
O prefeito de Vitória do Jari (AP), Ary Duarte da Costa, do mesmo partido do senador Alcolumbre, pediu e obteve o empenho de R$ 3,8 milhões para construir um estádio de futebol. Argumentou em poucas linhas a sua necessidade: “Possuímos em nosso município um Estádio Municipal que já foi palco de vários campeonatos e torneios de futebol, mas infelizmente com o passar dos anos foi sendo destruído pela ação do tempo e por depredação, ainda assim é utilizado para algumas práticas esportivas”.
São poucos os casos nos quais aqueles que não são parlamentares informam os padrinhos por trás das indicações. Ao pedir ao relator-geral R$ 1,7 milhão para ações em São Miguel dos Campos (AL), a secretária municipal revelou a fonte. “Estamos solicitando à Vossa Excelência, através do gabinete do deputado Severino Pessoa”, escreveu.
Enquanto isso, falta dinheiro para que órgãos federais planejem ações. Robson Pereira da Silva, superintendente regional do Incra no Distrito Federal e Entorno, pediu recursos da ordem de R$ 205 mil para ações relacionadas a regularização fundiária. Já Mauro Rodrigues Bastos, superintendente da Funasa no Pará, solicitou R$ 1 milhão para instalação de três micro sistemas de abastecimento de água. “O pleito acima justifica-se para que seja levado o abastecimento de água a diversas comunidades ribeirinhas e bairros aonde não chega água potável e nem saneamento”, sustentou.
Para a professora Elida Graziani Pinto, da FGV em São Paulo, os dados causam preocupação. “É indício de grave irregularidade o descumprimento de determinação do STF e de regulamentação do próprio Congresso sobre a necessidade da mais ampla transparência para as emendas de relator”, disse ela. “Tal opacidade recalcitrante, às vésperas das eleições, demonstra a captura do orçamento público para atender tão somente ao curto prazo os que almejam se reeleger a qualquer custo, ainda que implodindo o ordenamento jurídico brasileiro”, completou.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.