O que a Guerra Fria e a 2ª Guerra Mundial têm a ver com o apagão em São Paulo? Antes, uma pequena digressão.
Alimentamos o ódio à energia nuclear como nos foi incutida a aversão aos Estados Unidos. Por nada. Ney Matogrosso cantou lindamente, com o grupo Secos & Molhados, o poema “Rosa de Hiroshima”, de Vinicius de Moraes.
Quem não se emociona com as crianças mudas telepáticas, as meninas cegas inexatas, as mulheres rotas alteradas? Os reflexos permanecem: motoristas passam rezando na rodovia Mário Covas ao lado da usina nuclear, em Angra dos Reis (RJ). Medo da rosa radioativa, estúpida, inválida.
A referência imagética do poetinha é o cogumelo erguido sobre a cidade japonesa como solução norte-americana para o fim da 2ª Guerra Mundial.
Adolf Hitler e Benito Mussolini, parceiros do imperador Hirohito, haviam morrido no fim de abril, em maio a Alemanha assinara a rendição, chovia munição numa Tóquio já indefesa e nada de o soberano japonês reconhecer a derrota. Havia duas alternativas a quem desejava apeá-lo do poder, continuar dizimando a população e demolindo as cidades ou colocar em ação o produto desenvolvido pelo projeto Manhattan, dirigido por Robert Oppenheimer.
Mais conhecido pela cinebiografia ganhadora do Oscar 2024, Oppenheimer pilotou a criação da bomba atômica. O presidente que o contratou, Franklin Delano Roosevelt, enfrentara os maiores monstros da humanidade, mas morreu em 12 de abril de 1945, antes de Mussolini (executado no dia 28 do mesmo mês) e de Hitler (suicidaria 2 dias depois). Sobrou a bomba, literalmente, para Harry Truman, tido como um banana do Missouri.
Qual nada! Truman resolveu que Hirohito, considerado deus pelos súditos, não sairia por bem. Pois não saiu nem por mal: rendeu-se sem dizer que se rendia, entregou os pontos em agosto de 1945, mas se manteve vivo até 1989.
Poucos se interessaram pelas atrocidades de Hirohito, ficaram as imagens horríveis de mortes e mutilações em Hiroshima e Nagasaki. Entram em cena as narrativas.
Quando se fala em energia nuclear, vem à mente o horror das cidades bombardeadas. A associação é tão indevida quanto se cancelássemos o consumo de água por causa das enchentes. Energia nuclear é limpa e o Brasil deveria investir em usinas, como as de Angra, que já tem duas prontas, uma faltando cerca de 30%.
Nas contas do BNDES, entregues em setembro agora à Eletronuclear, é preciso aplicar R$ 23 bilhões para concluir a Angra 3 ou R$ 21 bilhões para desistir dela. O que retoma o desserviço da Operação Lava Jato ao Brasil: além das maiores empresas de construção do mundo, desmontou também o prestígio da Eletronuclear.
No final de 2023, a ONU fez em Dubai a Conferência do Clima, a COP 28 (como a do próximo mês, no Azerbaijão, será a COP 29 e a do ano que vem, em Belém, a COP 30). A principal decisão de países participantes, como os Estados Unidos foi: triplicar a geração de energia nuclear no 4º de século seguinte. E nós querendo adiar o inadiável.
Da energia utilizada no mundo, 10% são atômicas; no Brasil, só 2%. Portanto, insistir na energia elétrica no modelo anacrônico de reservatório em rios é querer curar a mão arrancando o braço. Mantida a hecatombe no ritmo atual, a água vai continuar evaporando nos lagos artificiais de usinas em gigantes como Paraná (de Itaipu), Tocantins (Tucuruí e Serra da Mesa) e Xingu (Belo Monte).
Existe a ideia maluca de construir diversas outras usinas hidrelétricas na Amazônia. Uma delas, a São Luiz, no Tapajós, ficaria em R$ 54 bilhões, o valor corrigido pela Calculadora do Cidadão, do Banco Central, a partir dos R$ 30 bilhões avaliados para as obras em 2014. Preço de apenas uma usina, hein! O que vai resolver? Nada. E arrebentaria essa joia da natureza que é o Tapajós.
Com essa montanha de dinheiro, é possível entregar a 3ª etapa de Angra, inclusive com os equipamentos, e ainda fazer a maior usina fotovoltaica do planeta.
O combo de rios secos, ar irrespirável e torneiras de que não caem uma gota não pode ser combatido com mais destruição. Atômica, solar ou qualquer outra limpa são melhores que os sucatões monumentais expostos ao lado dos antes caudalosos rios.
Veem perigo na energia nuclear por eventos isolados, esquecendo-se de que acidentes ocorrem também nas hidrelétricas. A fotovoltaica não oferece risco algum. O que não pode é continuar como está, ausência estúpida e inválida de luz e água, o ar palpável de tão sujo. Pode não ser o fim do mundo, mas já está igual ao começo.
*Demóstenes Torres, 63 anos, é ex-presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, procurador de Justiça aposentado e advogado. Escreve para o Poder360 semanalmente às quartas-feiras.