O populismo, que tanto ergue reputações, destrói coisas belas. Dentre as quais, a lindíssima Argentina, arrebentada pelo combo ditadura + kirchnerismo + peronismo. Aos cacos, a nação teve a coragem de ir contra todos ao ficar com Javier Milei contra tudo. Se ele comprovar na prática o destemor aplicado nos discursos, há uma esperança em favor de tudo, em favor de todos.
O eleitorado demonstrou bravura ao dar ao país a oportunidade de romper com o ciclo de demagogia. Vêm a imprensa e líderes internacionais exigindo que Milei cure fratura com band aid. Rotulem o novo presidente de bolsonarista, trumpista, maluco, mas alto lá, dêem-lhe um tempo. Esperem que junte os fragmentos de ossos, conquiste musculatura, robusteça a economia e coloque de pé o orgulho maior da América do Sul durante décadas.
Frequento Buenos Aires desde os anos 1980. Inicialmente, buscava os cenários dos livros de Julio Cortázar. Descobri que a cidade inteira é digna da melhor literatura. Sua música, não só o tango. Sua vibração, não só no futebol. Sua arquitetura, sua cultura, suas indústrias, sua história, seu vinho, suas ruas e sua gente.
Depois, já como secretário de Segurança Pública e Justiça, fui à Argentina em busca da expertise de combate à violência com policiamento unificado, inteligência, tecnologia e prestígio na sociedade. Além disso, havia pouco exemplo de administração a se observar por ali. A consequência foi o caos que se seguiria aos destroços humanos do regime de exceção, que teve o desplante de escalar crianças e adolescentes para enfrentar uma das maiores potências militares do planeta, a Inglaterra.
A sucessão de erros, com demagogos ascendendo e sucedendo generais golpistas, minou séculos de evolução. A fatia de Europa no Cone Sul foi transformada num naco de Sudão do Sul. Demoraram, mas acabaram com a Argentina. Tarefa difícil, pois já teve:
Visitar a Argentina continua sendo um programão. Pedintes e drogados nas ruas? Tem muito menos que em Nova York ou São Paulo. Assaltos? Sim, não tanto quanto os de Paris ou Los Angeles. Tráfico? Demais, longe de igualar Rio ou Chicago. Sinais de decadência? Muitos, como na maioria da Europa e nas regiões metropolitanas daqui mesmo. Está na moda falar mal dela e de Milei, inclusive para encobrir o freio de mão puxado na cabine de quem os execra.
Eis o que a Argentina passa, não o que ela é. A essência de nosso vizinho é liderar, a ponto de o maior estadista brasileiro, Pedro 2º, preferir a integridade do Paraguai a dividi-lo e aumentar em 50% (de 1.261 para 1.943 km) a fronteira com los hermanos. Torcer contra o soerguimento da Argentina, papel ridículo exercido atualmente por 90% da imprensa e dos políticos nacionais, é esfaquear o próprio estômago.
Nossas exportações para eles caem sem parar, de quase US$ 20 em 2012 para US$ 15,3 bilhões em 2022, todavia ainda é nosso grande parceiro comercial –o Brasil é o 2º, para ser mais preciso, atrás só da China, e o 1º em compras de lá para cá. As brigas pós-partidas de Fluminense e Boca Juniors pela Libertadores e das duas seleções nas eliminatórias para a Copa EUA-México-Canadá nada significam. O turismo recíproco supera 1 milhão de visitantes por ano. Testemunhei diversas vezes a afetuosidade com que são recebidos nas praias cariocas e catarinenses como nós em sua capital, Mendoza, Bariloche e demais destinos, de Puerto Iguazú a Ushuaia.
O assistencialismo e a estatização deixaram em andrajos um povo que usava terno até para ir de ônibus trabalhar de balconista ou na construção civil. Se Milei acabar com o Banco Central ou implantar a dolarização, conforme prometeu em campanha, pode ser que piore. Ou não. No entanto, algo precisa ser feito alheio ao receituário tradicional em que cada mandato de pauperização era seguido por outro de empobrecimento.
Merece todas as celebrações uma pátria que gerou Maradona (o Zico deles), Carlos Gardel (o Roberto Carlos de lá), Quino, criador da Mafalda (o Mauricio de Sousa, criador da Mônica, em espanhol e mais ácido), Juan Manuel Fangio (o Senna argentino), Guillermo Vilas (o Guga alviceleste, só que melhor), Gabriela Sabatini (a Maria Esther Bueno portenha, só que pior), Jorge Luis Borges (não dispomos de conterrâneo que se equipare), além dos já citados Cortázar, Francisco e Messi.
O correspondente brasileiro de Milei seria Bolsonaro? Talvez Lula? Um JK, que pode ser o mineiro Juscelino Kubitschek ou o norte-americano John Kennedy? Ou só o Javier Milei vencedor contra tudo e contra todos, que provará ter na cabeça, bem mais que cabelos revoltos, ideias para reconstruir uma nação que foi a mais rica da Terra?
Antes que atirem em mim parte das pedras jogadas em Milei simplesmente porque não vejo nenhum escritor local à altura de Borges, vale lembrar que dentre seus milhões de fãs estão 2 dos melhores e mais cultos integrantes do Ministério Público Federal: o ex (Augusto Aras) e o atual (Paulo Gonet) procurador-geral da República.
Borges poderia ser o 6º argentino com Nobel. Em suas próprias palavras, tornou-se “antiga tradição escandinava” negar-lhe a láurea. Em 2018, abriram-se os arquivos da Academia Sueca e descobriu-se o motivo: o júri o considerava conservador e elitista. Que Milei seja avaliado por suas atitudes como presidente, não por eventuais características impostas por alguém para considerá-las defeitos de outrem.
Demóstenes Torres, 62 anos, é ex-presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, procurador de Justiça aposentado e advogado