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Demóstenes Torres
O aeroporto Juscelino Kubitschek, em Brasília, quase foi cenário de um atentado na véspera do Natal de 2022. Porém, os extremistas falharam quando tentaram acionar o mecanismo que detonaria a bomba. A paz duraria pouco.
Na 4ª feira (11.jan.2023), extremistas usaram novamente o JK como palco de suas atrocidades. Não houve derramamento de sangue –o que se espalhou pelo piso rumo ao ralo foi a evolução civilizatória. Cristiano Zanin, professor e advogado, estava no banheiro do aeroporto quando se viu cercado por um trio de bucéfalos que não valem o cocô do cavalo de Alexandre Magno. Nada fizera contra aqueles criminosos. O que o filmava se entusiasmou a distribuir pancadas verbais. De todos os absurdos, o mais injusto foi chamá-lo de “o pior advogado que pode existir”. É exatamente o oposto.
A cintilação de Zanin, um dos operadores do direito de maior sucesso nesta República, se reflete nos resultados de seu trabalho. Existem explicações políticas e sociológicas para o retorno de Lula da Silva (PT) à Presidência. A jurídica tem nome e sobrenome: Cristiano Zanin Martins. Na defesa de seu representado, elaborou teses, insistiu, debateu e, ao fim, obteve êxito. O melhor advogado que poderia existir na biografia de Lula:
Vitorioso, deveria contagiar os que desejam resolver seus traumas fora da lei. Falar em foras da lei, relembremos os malfeitores que cercam autoridades como se elas estivessem erradas em existir, não eles em atacá-las. Para continuar no ramo legal e nos aeroportos, começamos 2023 demonstrando ao mundo, século após século, por que a mentalidade da perseguição está insepulta desde 1823 e enterra o Brasil com o nível de desenvolvimento de 1923.
Em 2 de janeiro, outro luminar das ciências humanas, o ministro Roberto Barroso, foi insultado em Miami antes de embarcar no avião para Brasília. O vice-presidente do Supremo Tribunal Federal ouviu achincalhes como os enfrentados por Zanin, alguns deles repetidos, pois os assassinos da honra chamam o acuado pelo que eles próprios são.
A gente de sempre e os xingamentos de sempre. No restaurante em Santa Catarina, no meio da rua em Nova York, onde quer que extremistas afiem a foice do obscurantismo na nuca da liberdade alheia.
Os palavrões tiveram a audiência de um Zanin e um Barroso tão impassíveis quanto indefesos. Eram 3 covardes contra o advogado, dezenas contra o ministro, 2 homens honestos chicoteados por imbecilidades. Durante o calvário, as vítimas fingem normalidade, fazem de conta que é com terceiro, todavia dói.
“É uma dor canalha/ Que te dilacera”, define o compositor Walter Franco na canção que sacudiu festival em 1979: “É um grito que se espalha” a ponto de extrapolar o país continental, ecoa pela costa Leste americana, arrebenta prédios dos Três Poderes em Brasília. “Também pudera/ Não tarda nem falha/ Apenas te espera/ Num campo de batalha”. A genialidade de Walter Franco seria vaiada pelos que agora segregam numa pia o talento de Zanin e exigem tolher o voo da sabedoria do integrante do STF indo para casa.
O grito desalmado da malta para impedir a viagem de Barroso era sussurro se comparado ao bater de seu coração. A frequência do pulsar esteve desde 1994 ligada a Tereza Cristina van Brussel Barroso. A corja poderia urrar até implodir os pulmões que não atingiria o ministro, pois seu pensamento permanecia inteiramente em Tereza. Era com ela que ele sempre ia. Era para ela que ele voltava.
É professor e magistrado. Nada fizera contra aqueles marginais. Se, antes dos insultos, os bandidos tivessem dado um Google em seu currículo, constatariam o equilíbrio das decisões. Em vez do sistema de busca, apelaram para o esquema de perda da urbanidade. Porém, termos sujos ecoam, poluem o ar, sem atrapalhar consciência limpa como a de Barroso. Até porque sua atenção estava a 7 horas de jato dali, estava onde estivera nas 3 últimas décadas, estava com Tereza.
A felicidade que a soma daqueles manifestantes já teve em suas vidas não alcança o privilégio de existir um instante para alguém como Tereza. Li na Folha de S.Paulo que se conheceram numa reunião de amigos. “Reparei nela nesse primeiro momento”, disse Barroso ao jornal. “Depois, a chamei para sair, ela relutou um pouquinho, mas aceitou. Depois, nunca mais nos separamos”, completou. Não seria o barulho dos asnos bípedes que distanciaria o casal. Por isso, Barroso tinha pressa de voltar, assim como agiu rápido para se casar com Tereza. “A cerimônia foi celebrada pelo então juiz Luiz Fux, amigo de Barroso e hoje seu colega no STF”, informa a Folha de S.Paulo.
Dois futuros componentes da Suprema Corte e a estrela era Tereza. Uma amiga resumiu ao jornal os depoimentos definidores que, na mesma toada de Barroso, ressaltam a leveza e bom humor “ímpar”: “Estava sempre sorrindo e cantando”.
Tereza nasceu em Paramaribo, no Suriname, e aos 10 anos mudou-se para Niterói com a família. Era estilista de moda e empreendedora. Teve fábrica e duas lojas. Estudou direito e letras. Uma moça dessas, ainda bem-humorada e sorridente, que preenche os dias a cantar, melhora o mundo de qualquer pessoa, faz a existência valer a pena. Flutuando entre as nuvens, o namorado carioca Luís Roberto atravessava de barca da Cidade Maravilhosa para a cidade onde residia a maravilha tão lépido quanto estava no pós-réveillon vindo para o Brasil.
As narrativas esculpem uma Tereza inefável, entretanto Luís Roberto foi um companheiro à altura. Naquela 2ª feira (2.jan.2023), o que o dilacerava não era a dor que os canalhas planejavam impingir-lhe. Seu coração, acostumado ao júbilo, apenas esperava viver Tereza o máximo e o mais intensamente possível. Juntos, enfrentaram um câncer no fêmur que a levaria 11 dias depois do episódio em Miami. Deixou o marido, os filhos Luna e Bernardo, uma multidão de querer bem e o legado insuperável: o dos sorrisos que espalham contentamento, do bom humor que contagia, da alegria que a tornava única. É o canto da mulher amada que povoa a audição de Barroso, não o ruído das ofensas, que passaram longe de sua mente –o tempo inteiro ela ficou perto de Tereza.
que nos espera neste campo de batalha globalizado é a violação da privacidade enquanto escovamos os dentes e recebemos ameaças de quem deveria lavar a boca antes de se dirigir aos Zanin que somos ou gostaríamos de ser. O que nos espera fora do Brasil é o grito de algum insano a maltratar-nos os tímpanos enquanto temos pressa de dividir os últimos acordes com um ser indescritível. Também pudera, escapam ilesos, mas a impunidade pode estar em xeque, porque o ministro da Justiça, Flávio Dino, assegura que vai combater os pistoleiros do sossego. Esperemos. Dilacerados.
Não tenho proximidade com Zanin nem com Barroso, mas fui amigo de Walter Franco, por quem tanto torci, cujos versos tanto cantei. Deu ao cancioneiro nacional sons e letras formidáveis e a mim, particularmente, um jingle de campanha para eu usar na eleição de governador de Goiás em 2006. Perdi na urna, ganhei na arte. Assim estão o brilhante advogado e o magistral magistrado, que com eloquente silêncio diante da maldade venceram o mal.
(Demóstenes Torres é advogado, ex-senador e procurador de Justiça aposentado)